Por Almir Nahas(*)
Foi o brilhante e angustiado compositor Belchior quem ousou admitir uma verdade que atormenta muita gente, em uma de suas mais conhecidas composições, Como Nossos Pais, eternizada pela pequena grande Elis Regina, ainda no século passado: “Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.”
Em minha vivencia terapêutica, é notória a incidência de pessoas que tiveram um pai alcoólatra e se casam com um dependente químico. Ou que conviveram com a violência doméstica na infância e se vem envolvidas nesse mesmo contexto na vida adulta. Ou que juraram para si mesmas que jamais seriam como seus pais e acabam sequer tendo filhos, ou se surpreendem traindo sua jura, repetindo comportamentos que condenavam. A repetição de padrões indesejados é uma das fontes mais abundantes de trabalho para todos os tipos de terapeutas.
Na visão das Constelações Familiares, a origem da repetição de padrões está justamente na rejeição. Aquilo que rejeitamos nos aprisiona. Rejeitar é uma das formas mais potentes de manter o vínculo natural que temos com nossa origem consanguínea, e que não podemos, na visão sistêmica das constelações, romper.
Isso não quer dizer, porém que estamos condenados a repetir padrões, como se fosse uma maldição, uma fatalidade. Muitos ficam presos na necessidade de saber por que foi assim, ou fantasiando como teria sido se lá no passado tivesse sido diferente. E isso nos limita, restringe nossas escolhas.
Tomar decisões na vida e fazer escolhas para ser “diferente” de alguém ou de algum modelo do passado é tentar andar pra frente, só que olhando para trás. Quando quero a todo custo fazer algo diferente daquilo, estou sempre olhando para aquilo que eu nego, renego e rejeito, na hora de agir. Não estou indo em direção a algo, mas estou apenas fugindo de algo. E isso é bastante limitante.
Qual seria, então o caminho para deixar de honrar aquilo que não queremos levar adiante? Como tocar a vida sem estar preso a armadilhas do inconsciente que nos aprisionam a limitações do passado?
A proposta das constelações parece, segundo muitos que chegam para meus atendimentos, mágica e surpreendente: o que me liberta é a aceitação, profunda e sincera, daquilo que foi, exatamente como foi. Ao dizer SIM para o que quer que seja que tenha sido, eu não preciso concordar com o que foi nem como foi, mas eu não preciso mais viver carregando uma bandeira. Não tenho a obrigação íntima e muitas vezes inconsciente de ser melhor do que aqueles que fizeram o que fizeram. Ao dizer SIM para os fatos, mesmo lamentando o que aconteceu, eu começo a me libertar. O SIM que vibra internamente com essa qualidade abre uma porta e me coloca um passo adiante. A raiva, a rejeição, a indignação de hoje por algo que aconteceu no passado não me liberta, pelo contrario, estreita meus horizontes. Ao dizer SIM, aquela dor, aquele trauma, aquela visão de mundo torna-se meu ponto de partida. Sim, eu sou filho deles, sim, eles faziam isto e aquilo. Sim, eles fizeram escolhas que os fizeram sofrer e a mim também. Mesmo assim, eles são e sempre serão importantes para mim. Afinal, eles me geraram. Me deram a vida. E o que eles não puderam me dar, eu posso buscar por mim, afinal estou vivo e posso olhar o mundo com meus próprios olhos. Ao olhar desta maneira os meus pais, irmãos, e depois deles, a todos os encontros que tive pela vida – ex-parceiros, ex-sócios, etc., eu recolho todos os aprendizados de cada fase da vida, de cada encontro, de cada escolha que eu mesmo fiz, e posso olhar além, livre da culpa ou da necessidade de apontar culpados, além da raiva ou da mágoa. Crescer às vezes dói. Mas se realmente quero ser o protagonista de minha vida, não preciso amar a tudo o que me aconteceu nem agradecer por tudo. Mas posso reconhecer o essencial e a partir daí eu posso, em nome do essencial, fazer algo de bom com minha vida. Se faço isso, é também uma forma de dizer a eles, os algozes do meu passado, que esta é minha maneira de colocar um fim no sofrimento deles e no meu. Se me sinto mais livre, leve e disponível para fazer escolhas, essa será a minha maneira de honrar a vida que eu ganhei deles, o meu modo de mostrar que aprendi as lições do passado e estou totalmente disponível para olhar para a frente. Não preciso mais preencher o vazio que eu tinha de pai ou de mãe reproduzindo padrões. Posso soltá-los e deixa-los ir. E passo a honrar minha origem de uma maneira nova, com um novo olhar. A dificuldade em perdoar é o medo de perder o vínculo indestrutível e inegável. Mas posso reconhecer e fortalecer, no aprendizado com as dores do passado, outro nível de vínculo. Nesse movimento, não preciso ser maior ou melhor que eles. Posso reconhecer que, assim como eles, estou fazendo o melhor possível pela minha vida e a vida daqueles que estão vinculados a mim. É um novo olhar.
(*) Almir Nahas é jornalista, consultor, terapeuta e professor de Constelações Familiares. Em 2008 fundou o Instituto Olhar Sistêmico.