Almir Nahas

Vibrações da nova hora

Por Almir Nahas(*)

A crise internacional de saúde pública caiu como um tijolo sobre boa parte do mundo, e está causando mudanças profundas no nosso modo de vida. O quanto essas mudanças têm caráter provisório ou permanente, quanto tempo ainda teremos que conviver voluntária ou forçosamente com restrições de mobilidade e contato presencial, de fato, não sabemos. 

Pode-se fazer previsões, desenhar cenários, imaginar alternativas, mas saber mesmo, quem sabe? Só com o tempo poderemos avaliar quais as mudanças mais profundas que este momento irá ttrazer. Mais particularmente, o que será do Brasil e dos brasileiros? Ainda não sabemos como a vida vai continuar, as mudanças estão em curso. Isto vai passar, mas não vejo ser possível saber como e quando. Mas vai passar.

Porém, depois do primeiro ciclo lunar dentro do inusitado cenário, superado o choque inicial e suas multivariadas reações, já podemos obter as primeiras leituras do que está acontecendo, pelo menos até onde me é possível observar de minhas janelas voltadas para dentro e para fora de mim.

A mais óbvia constatação é o efeito potencializador do vírus: o que estava acontecendo lentamente se acelerou, o que estava latente ficou explícito. O tempo está passando mais ligeiro para pessoas mais frágeis, seja pela idade, pelo estado de saúde ou condição social. O medo cresceu em muitos corações e a fé na vida e no Senhor da Vida também está mais mobilizada do que antes, para aqueles que tem alguma fé.

Outra evidência gritante é a “realidade sistêmica”. Cada ser é uma célula dentro de um amplo contexto. O que afeta a um afeta a todos. Estamos pagando com vidas um movimento de conscientização que já se mostrava muito necessário: a humanidade é uma só, estamos no mesmo barco, ou na mesma nave, e não somos os únicos habitantes desta maltratada nave mãe.

Poucas semanas após a paradeira, a natureza ganhou um impulso magnifico em seu eterno processo de regeneração, deixando claro que, se o bicho homem aprender a andar com a pisada mais leve, o equilíbrio ainda pode ser possível. Mas fica a dúvida: quantas mortes ainda serão necessárias para que se faça a mudança sistêmica de mentalidade? Qual o preço que ainda pagaremos para entender que a preservação ambiental não é uma escolha, é questão de sobrevivência?

Os deprimidos estão trancados em casa, muitos até sem vontade de pedir ajuda. Há muita solidão nas multidões, e muitos espíritos solidários disponíveis. 

A depressão na economia ainda não se pode calcular. Certamente tem alguém contando quantos empregos já morreram com a pandemia. Milhares de empresas que estavam mal das pernas já morreram, muitos empregos estão sumindo. Empresas que pareciam firmes estão com as pernas bambas, procurando a UTI e se deparando com a falta de respiradores.

Tem uma velha economia, baseada no lucro pelo lucro, nas metas estratosféricas perseguidas alucinadamente, na ganho de alguns obtido através da perda de outros. Uma mentalidade que já estava perdendo forças, demonstrava falta de ar, e que está aos poucos definhando, mas vai levar com ela muitos empregos formais, e ao mesmo tempo empurrar muitos para um cenário que não estava nos planos de milhões: o empreendedorismo forçado.

Empreender, porém, é próprio da natureza. A relação de trabalho baseada no emprego ganhou espaço com a revolução industrial. É recente. Ao longo da nossa história ancestral, porém, viver sempre foi empreender. 

Um dos efeitos pandêmicos desta nova hora é que muitos acomodados estão sendo empurrados para uma nova atitude, por falta de opções. É empreender ou morrer.

Claro, quem tem uma confortável poupança está um pouco menos aflito do que aquele que não tem, mas em compensação está menos acostumado com a escassez. O pobre arranca a vida com a mão desde sempre, é mais adaptável.

Pais estão estressados pela overdose de convivência doméstica. Estão inevitavelmente encarando o “distanciamento social íntimo”, uma epidemia silenciosa que está corroendo o tecido social faz tempo, e que agora está incomodando mais. 

Famílias estão sendo forçados a cuidar das comorbidades emocionais pessoais e familiares, das quais estavam tentando se esconder com a vida corrida do coelho da Alice, pressionados pelo relógio. A família já estava doente? De que? Os filhos já gritavam pedindo e os pais não queriam ouvir? O que clamavam?

Do outro lado da moeda, as pessoas estão mais solidárias. Os generosos estão cheios de oportunidades para servir ao próximo com o melhor de si, e estão até ganhando algum espaço no noticiário, embora ainda seja um espaço marginal, para terminar o telejornal com um sorriso, depois de um desfile majoritariamente opressivo e insano de versões que insistem em chamar de “fatos”. Tem muita gente boa fazendo o que sempre fez: o bem.

Outro aspecto positivo: as histórias pessoais dos que morreram e dos heróis da frente de batalha estão ganhando evidência. Cada vida conta. Sempre contou, não é novidade, mas muitos estão mais atentos a isso do que antes. 

Quantos motoqueiros morrem todos os anos no alucinado trânsito de nossas cidades? Quantas crianças e adultos morrem na pulverizada guerra do narcotráfico? Quantas pessoas morrem a cada ano por não encontrar um leito de hospital e um atendimento digno, no falido sistema de saúde do país? Qual a novidade? A escalada das estatísticas, só.

Cada vida conta sim, mas havia uma dose de letargia e insensibilidade para outras pandemias. Parece que mais gente está sendo sensibilizada pela pandemia da vez, e isso pode significar um ganho colateral: a humanidade pode estar se humanizando mais.

A perspectiva da morte evidencia o valor da vida. A falta de abraços evidencia o valor do abraço. A perspectiva da fome evidencia o valor de uma refeição. Estamos em uma marcha acelerada em direção ao futuro, e as mudanças sendo germinadas em cada indivíduo. 

Repensar, recriar, refazer, rever, renovar, palavras de ganham força para além das palestras motivacionais ou dos livros de auto-ajuda. O fato é que a raça humana está sendo posta a prova, e está sendo chamada a rever seus propósitos e buscar respostas que antes estavam sendo ignoradas, mas que hoje estão empurrando os insensíveis a acordar, nem que seja no susto.

Os mais serenos que eu avisto das minhas janelas são os mais centrados naquilo que é essencial: no amor, na fraternidade humana, na generosidade, na cooperação, na ética, na gratidão pela benção diária que é a vida. 

O despojamento do que é supérfluo está ganhando força. A importância dos valores morais também. Parece mais forte o apelo para “descoizar” a vida e assim poder preservar o mais importante. Estamos pagando um preço ainda não estipulado por esta fase de profundos aprendizados. Aprender a ser gente é um trabalho constante. 

Há um novo amanhã despontando, mas enquanto a noite da incerteza persistir, tem muita gente procurando os culpados e muitos também esperando ver a luz no fim do túnel. 

E há aqueles que não esperam que alguém lhes traga o velho normal de volta, preferem seguir em frente ao encontro do novo dia, preferem acender uma vela e manter a sintonia com o que está acontecendo aqui e agora, que é o único lugar e o único tempo realmente nossos. 

*Almir Nahas é jornalista, terapeuta sistêmico, consultor e empreendedor.

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